Um dos livros mais impressionantes que li sobre o tempo é “The End of Time”, do físico Julian Barbour. Pesquisador do assunto por mais de quatro décadas, chegou a uma conclusão que parece mais filosófica que científica: o tempo não existe. O que existiria, na realidade, é a nossa percepção da passagem do tempo, da mesma maneira que percebemos (erroneamente) que a Terra está parada e tudo o mais no Cosmos gira ao redor dela. Barbour fala sobre as conseqüências dessa descoberta para o aperfeiçoamento do nosso entendimento do Universo na entrevista que concedeu à jornalista Isabel Clemente, da Folha de S. Paulo, por ocasião do lançamento do seu livro. A transcrição segue abaixo:
“(…) ‘O tempo não existe’. Não adianta sequer tentar suavizar a proposta. Estaria Julian Barbour falando de algo menos dramático, de algum viés da física inacessível para os não-iniciados no meio científico? ‘Não’, diz, ‘o que eu proponho é bem radical mesmo’.
Casado, pai de quatro filhos, nascido em Jerusalém, mas britânico por adoção, seu ambiente de trabalho é o próprio lar: uma casa do século 17, cercada, de um lado, por uma igreja do século 12 e, de outro, por construções não menos antigas numa pequena vila na área rural da Inglaterra, ao noroeste de Londres – um lugar onde o tempo parece ter parado.
P – Sua tese de que o tempo não existe é difícil de ser assimilada porque vemos movimento, uma das provas de que o tempo é real. Como o senhor explica isso?
Barbour – Nós sabemos que o cérebro nos engana quase sempre. Quando assistimos a um filme no cinema, imagens paradas estão correndo tela abaixo e nós não conseguimos ver. Nossos olhos não acompanham a mudança e concluem haver movimento. É uma completa ilusão. Acredito que aconteça o mesmo quando nosso cérebro faz com que acreditemos em movimento. Entre montes de imagens registradas no nosso cérebro, ele as organiza de forma a passar a idéia de movimento.
P – Qual seria o impacto na vida das pessoas se ficasse comprovada a inexistência do tempo?
Barbour – Isso é muito difícil de prever. Copérnico, ao descobrir que a Terra não era o centro do Universo, não tinha idéia do que veio depois dele, sobre o que Galileu e Albert Einstein realizaram com base na sua revolução. Minha tese é uma conjectura, e não estou sozinho nisso. Há um bom número de respeitados cientistas conduzindo pesquisas em linhas similiares à minha. Se essa conjectura for provada, certamente nos deixará mais conscientes sobre o quanto o mundo é especial, sobre a criatividade da natureza.
Foi o mesmo quando Copérnico, no século 16, descobriu que a Terra estava se movendo. É óbvio que a Terra não está se movendo, nada se move, mas Copérnico fez sua descoberta olhando para os planetas e as estrelas e percebendo que as posições mudavam. Essa foi uma dedução que mudou completamente a visão do mundo. Galileu, com base nesses achados, foi além, e Einstein, 300 anos depois de Copérnico, chegou à teoria da relatividade e à lei da inércia. Foram consequências que Copérnico jamais poderia imaginar, e talvez seja o mesmo tipo de mudança que uma teoria como a da inexistência do tempo possa provocar. O problema é que estamos tão acostumados ao tempo que sequer paramos para pensar sobre isso.
P – Dificilmente as pessoas deixariam de usar relógio, por exemplo, ou desacreditariam totalmente nas medidas do tempo. Sendo assim, a comprovação da inexistência do tempo seria uma outra abstração, válida apenas para o meio científico?
Barbour – Não. O relógio ainda teria sua utilidade, não para indicar as horas, mas para indicar a possibilidade que se conhece. Os instantes do tempo são um pouco como lugares diferentes na Terra. O relógio seria como um instrumento de navegação, que diria onde você está no planeta. A cada momento, nos encontramos em uma nova possibilidade, e o relógio seria a prova da existência desse instante.
P – O que é o passado?
Barbour – É tão real quanto um agora. O nosso corpo, por exemplo, passa por bilhões de pequenas modificações em apenas um segundo. Bilhões e bilhões de hemoglobinas são criadas e destruídas. No fundo, somos pessoas diferentes a cada instante e a nossa consciência é parte disso. Cada agora vem com uma gama de possibilidades de experiências e não se pode dizer que uma experiência vem antes da outra. Esse é o problema da seta do tempo, parece que há uma cronologia, uma impressão tão consistente que acreditamos na linha do tempo. Uma história pode ser arranjada para parecer cronológica. Algumas mudanças nessa estrutura não deixariam a mesma impressão de continuidade. O cerne da minha teoria questiona isso, por que apreendemos apenas as informações que parecem dar a noção de cronologia? É um mecanismo poderoso que resulta na nossa experiência. Minha explicação é que apenas os agoras que fazem algum sentido lógico são escolhidos pela mente.
P – Se temos um “agora” na mente, os outros são expressos pelas possibilidades que eu penso terem sido descartadas, mas que ainda existem em algum lugar?
Barbour – Isso é um grande mistério. A física newtoniana é a forma como entendemos o tempo. Como se houvesse um curso na história. Já a mecânica quântica não nos fornece essa imagem, pelo contrário, diz que há várias probabilidades ao mesmo tempo. O problema é que, hoje, a mecânica quântica só é aplicada a uma parte do Universo e o desafio é aplicá-la a todo o Universo, porque, segundo esse princípio, um objeto pode estar em vários lugares ao mesmo tempo. Na física quântica, até você provar que o objeto está em apenas um lugar, ele está por toda parte. E é um princípio que se torna ainda mais complicado, bonito e surpreendente quando diz que vários objetos podem estar em um único lugar ao mesmo tempo. Aplicada a todo o Universo, essa teoria possibilita a existência de vários “agoras” num único instante. O que a mecânica quântica diz é que há várias versões de você por toda parte.
No mundo da mecânica quântica, ocorrem em você bilhões de coisas nesse momento, mas haverá sempre um outro, no qual você não entrará. Somos prisioneiros do agora em que vivemos.
P – Mas neste mundo em que vivemos há provas fortes da direção do tempo, o envelhecimento, as memórias, o movimento, a própria contagem do tempo.
Barbour – O fenômeno está correto, mas a explicação errada. Pela minha noção de tempo, a explicação deveria ser outra. Além do mais, é preciso lembrar que o sol e as estrelas mostram uma passagem diferente do tempo. Venho questionando por que uma medida seria melhor que a outra.
P – O sr. é religioso?
Barbour – Fui quando era mais jovem. Hoje acredito que a vida é um dom e um mistério pelo qual sou infinitamente grato. Acredito que a física ainda realizará notáveis descobertas. O fato de as leis científicas não preverem nenhum papel para as cores e os sabores prova que muito está por vir.